domingo, 2 de dezembro de 2007

Confesso Senhor, eu confesso…



Já tinha feito uma quantidade de coisas desde que o Sol da Senhora da Graça me havia batido nos olhos. Ressabiado do corpo gelado do dia anterior, tinha calçado as xanatas e ido para o estradão bater mais uns quilómetros, ajudado pelos cães dos caçadores que não perdoam aos gimbras como eu, a ousadia de andar na beira dos montes, porque hoje é domingo.
Saí cedo na direcção das serras da Lameira, ali entre Montim e Regadas porque o Zé Ferreira me havia dado notícia de uns penedos que lhe pareciam contar histórias de antigamente. Nós, por aqui, somos muito ciosos destas pegadas do ser humano, tão ciosos, que existe um planalto onde os romanos estiveram acampados 120 anos, e mal soubemos das primeiras fíbulas encontradas, levamos lá um arqueólogo, daqueles que já tem trabalho para o resto da vida e num domingo, duro como o diabo, gizamos o plano de ataque que consistiu «só», em contratar uma máquina para deitar mais 20 cm de uma camada de terra por cima de toda a área imaginada como acampamento.
Bom, mas isto é apenas um ‘fait divers’ deste meu dia.
Parei em Fafe para dar corda ao depósito do ‘gasoil’ e fui para a bicha de um daqueles milhares de Modelos que povoam as nossas pequenas cidades-aldeia. Apetecia-me um café ou dois e assim aconteceu.
Entretanto fui passeando os olhos pela fauna da manhã e parei na miúda que estava de serviço à máquina registadora dos pequenos-almoços. A carinha não enganava, aquela frescura toda vinha ali de Moreira de Rei, daqueles sítios onde os de fora ainda não se aventuram a fazer filhos. Aqueles traços são inconfundíveis e o genoma das gentes mantém-se inalterável.
Era toda uma alegria de primeira vez, em que, saída fresquinha da formação a miúda perguntava tudo ao cliente, queria saber tudo, tudo explicava numa explosão de estar bem com aquilo que fazia.
Mau, como sou, hiper-super convencido como diz uma amiga minha, imaginei o que seria o mesmo filme daqui por um mês.
A rotina vai deixando cair as frases, a tentação de pedir o cartão a este mas esquecer pr’a aquele, o fechar a frescura do sorriso, perder o automatismo da chávena para um lado e o pão-com-manteiga para o outro, etc. e coisa e tal.

Mau, como sou, lembrei-me da maioria esmagadora dos nossos professores da educação superior, sem formação para ensinar, educar, instruir, explicar, apresentar, comentar, perguntar, brincar, e tantos outros verbos que fazem falta na nossa sala de aula.
Veio à minha memória, tantas primeiras vezes, de novos cursos, novas disciplinas, novos projectos, em que as duas primeiras sessões são como lua-de-mel. Depois, sucedem-se as descobertas: aquele porque ressona, aquela porque acorda sempre mal dormida, o outro que se levanta cedo, a outra porque antes das onze ainda é tudo negrura da noite. Falta-nos quase tudo, a nós, professores da educação superior, privilegiados porque o «dono» ou a «dona» da disciplina ainda somos nós mesmos, mas isso aparte, falta-nos interesse por parte dos Vice-Reitores, por parte dos Directores dos Departamentos, dos Directores dos Cursos, ninguém quer saber do que precisamos para manter a chama viva, apesar do intenso desgaste proveniente do uso.
Claro, claro que parte da culpa nunca foi solteira. Nunca contamos a verdadeira história desta cena. Pagamos para ter a célebre «liberdade» e «independência» e assim podermos brincar aos professorzinhos e às universidadesinhas.
Confesso Senhor, eu confesso, que os meus planos de aula são exagerados.
Confesso Senhor, eu confesso, que a maioria dos meus «powerpoints» não fazem qualquer outro sentido que não seja a função de «encher o chouriço».
Confesso Senhor, eu confesso, que não faço o mínimo esforço para que a minha lição seja dada de acordo com o que eu disse que ia fazer e tal qual eu disse como iria fazer.
Eu não tenho concorrência Senhor, por isso tu esperas, que eu seja digno bastante para dedicar 3 vezes mais do tempo da minha próxima aula à preparação da mesma.
Eu cometo muitas fraudes Senhor, na avaliação dos meus alunos e do trabalho que eles produzem. Sei que eles me aldrabam e convivo com isso pacificamente. No fundo, lá bem no fundo do meu íntimo, oh! Senhor, tu sabes que eu pago-lhes da mesma moeda.

Ufa! Já aliviei a consciência. Será que sou digno de comer alguma coisa?

- Não, não, não preciso da lista, só o prato faz favor.

1 comentário:

Rosa Silvestre disse...

Olá Alexandre, má como sou, só não entendi uma coisa...se estava num café como se foi confessar(foi à missa? hoje é domingo....pois está desculpado.)
Agora a sério, tem aqui um excelente texto, com algumas reflexões que deveriam ser feitas por quem é de direito....Uma boa semana!